terça-feira, 16 de novembro de 2010

Ofensas em discurso de fé podem ser levadas à Justiça

Há duas semanas, o Tribunal Superior Eleitoral julgou um interessante caso. Uma coligação partidária pedia direito de resposta em razão de uma missa transmitida pela televisão (Rp 340322). Isso porque o padre, na homilia, fez um sermão contrário a uma candidatura presidencial. A matéria de mérito não chegou a ser tratada no julgamento, por conta de uma questão processual que impediu a sua análise. Mas a tese demandada, em si mesma, merece algumas reflexões.

A meditação começa fácil porque não há controvérsia quanto aos fatos: houve, sim, um sermão de nítido caráter político. E ele foi transmitido pela televisão, sabidamente uma concessão pública, com regramentos especiais em período eleitoral. O quesito a ser feito é: decorre desse excesso do sacerdote o direito de resposta na própria missa televisada?

Alguns dirão que sim: o Estado é laico (Constituição Federal, artigo 19, I), a televisão é um instrumento do poder público em mãos particulares (CF, artigo 223), houve o excesso e há um diploma legal regendo a espécie (Lei 9.504/97). Como ninguém está acima da lei, também a missa deve ser objeto de intervenção, para o fim de reparação do erro. Ademais, o direito de resposta tem matriz constitucional (artigo 5º, inciso V). São bons argumentos.

Outros, todavia, dizem que não: o Estado respeita a liberdade de culto e o protege (CF, artigo 5º, inciso VI). Por isso, os excessos praticados no momento da celebração religiosa devem ser resolvidos de outra forma, que preserve a intangibilidade dela. Haverá o direito de resposta, mas não no momento da liturgia da palavra. Não no templo. Não no altar.

Bem observada a legislação eleitoral, vê-se que ela assinala que o direito de resposta em rádio e televisão deve ser concedido no mesmo veículo e em tempo igual ao da ofensa, mas nunca em duração inferior a um minuto. É o que dita o artigo 58, inciso II, alínea c, da Lei 9.504/97 e o artigo 15, inciso II, alínea d, da Resolução TSE 23.193. Isto implica dizer que a resposta não há de ser necessariamente proferida no mesmo local (isto é, no mesmo programa) da ofensa. Por isso, missa e contradita podem ser conciliadas. Ou melhor: separadas.

Aí está a solução compromissória que respeita a necessidade de reparação do ofendido e atende ao respeito ao culto religioso, sem vulneração das regras de Direito. A resposta não precisa ser implementada no momento da cerimônia. Pode ser dada por meio de abertura de um espaço específico para ela na grade de programação da emissora. O que se cobra é que seja proporcional ao tempo do ataque (e, por uma razão de bom senso, no mesmo horário em que ocorrida). Os diversos preceitos constitucionais e legais envolvidos estarão preservados com essa providência.

Problemas maiores, contudo, poderão ocorrer quando a ofensa não for de fácil detecção ou não for reconhecida pelo agressor. Será mister, em casos assim, que o Judiciário verifique se a pregação religiosa proferida nos meios de comunicação é desconforme o Direito. A matéria será delicadíssima, porque implicará em jurisdicionalização do discurso da fé. Mas, nem por isso, será proibida a análise judicial. Será mister, nesse contexto, que o assunto seja tratado com redobrada atenção, para que não se perca de mira que existem temas que transcendem o religioso e se encontram com o político.

Aborto, eutanásia, uniões homoafetivas são pautas civis, de relevante interesse para diversas denominações religiosas. Tocar nesses temas é inevitável no culto. Cobrar dos fiéis reverência aos preceitos de seu credo, idem. Esse tipo de concitação pode ter conteúdo político, mas não será repreensível pelo Judiciário.

O encontro das questões de fé com as da política não é obscurantista, não é fundamentalista, não é anômalo. É natural, é lícito, é de ser tolerado. Paixões políticas que pretendem reprimi-lo não são melhores que as ordens religiosas que tentam satanizar as divergências.

O Estado é laico. Os eleitores, nem sempre. As igrejas, nunca. É a vida. É o Direito brasileiro.

Por José Rollemberg Leite Neto
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário