segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Juíza do Pará diz que servidor descumpriu ordem

Há três anos, a notícia de que uma adolescente de 15 anos ficou presa por quase um mês em uma cela com 23 homens causou indignação nacional. Desde então, a pequena comarca de Abaetetuba, no Pará, se tornou palco de uma perseguição para saber quem eram os responsáveis. Dois delegados, Flávia Verônica Monteiro Pereira e Celso Iran Cordovil Viana, e o superintendente da Polícia Civil na região, Fernando Cunha, foram afastados. Raimundo Benassuly Maués Junior, chefe da Polícia Civil no estado, pediu exoneração. Doze pessoas foram denunciadas criminalmente pelo Ministério Público, sendo cinco delegados, dois investigadores, três agentes prisionais e dois presos.

Passada a comoção, a juíza Clarice Maria de Andrade, da comarca criminal local, apontada como responsável pelo absurdo, foi a única efetivamente punida. Em abril, ela foi aposentada compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça. O órgão decidiu, por unanimidade, tirá-la da ativa por ela ter se omitido em relação à prisão da menor Lidiane Alves Brasil, que sofreu torturas e abusos sexuais durante 24 dias. Os conselheiros entenderam que ela sabia que não havia espaço reservado na delegacia onde a menor pudesse ficar.

Com um recurso pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, Clarice já teve negado um pedido de liminar para anular a decisão do CNJ. Enquanto espera a decisão que vai definir os rumos da sua vida, ela resolveu falar.

Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, Clarice, que hoje ganha pouco mais de R$ 3 mil de aposentadoria, se diz vítima de um julgamento político e midiático. “Na mesma época, mais quatro casos de mulheres presas junto com homens foram encontrados no Pará e em outras comarcas, e sequer foram instaurados procedimentos para investigar os fatos”, afirma. A ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal na época, chegou a pedir um levantamento da situação à presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba, Albanira Lobato Bemerguy.

Para explicar o que permitiu que a adolescente ficasse quase um mês sujeita ao que os presos quisessem fazer, Clarice lista uma sequência de desencontros. Entre eles, uma homonímia que encobriu a menoridade da garota, um pedido de transferência de prisão despachado mas não encaminhado, e até mesmo a falsificação de uma certidão. “Fui julgada sem sequer ser ouvida pelo relator do processo”, diz.

“A gravidade da situação é tanta que ela não tem condições de ser magistrada em nenhum lugar do mundo”, disse, no dia 20 de abril, o conselheiro Marcelo Neves, do CNJ, ao acompanhar o voto do relator do processo disciplinar, Felipe Locke Cavalcanti. Além da acusação de omissão, a juíza também respondeu por falsificação de documento. Era um ofício pedindo a transferência da menor feito com data 13 dias retroativa. “Parece-me um descaso completo. Ela tinha o dever de evitar que essa presa sofresse as maiores violações que uma pessoa poderia sofrer”, disse o conselheiro Leomar de Souza.

Tudo não passou, segundo a juíza, de um jogo de batata-quente, no qual todo mundo se livrou e só ela acabou responsabilizada. “Constitucionalmente, o responsável pela guarda do preso é o Poder Executivo, e não o Judiciário”, defende-se.

Ela garante ter oficiado a Polícia local sobre as condições da carceragem muito antes da prisão de Lidiane — mesmo argumento usado pela promotora Luziana Barata Dantas, do Ministério Público paraense, para se defender em investigação do Conselho Nacional do Ministério Público. “A promotora se fez presente em inspeção na Delegacia de Abaetetuba no dia 17 de outubro de 2007, havendo inclusive documentos emitidos pelo Ministério Público denunciando a falta de condições do ambiente carcerário”, disse na ocasião o conselheiro Maurício de Albuquerque, absolvendo a promotora.

No caso da juíza, no entanto, a alegação não foi suficiente para convencer o CNJ. “Se prevalecer a tese de que o magistrado é responsável pela carceragem, logo teremos juízes condenados pelas mortes e torturas nas prisões”, ela diz.

Versão da juíza

Logo no primeiro dia em que assumiu a 3ª Vara Criminal de Abaetetuba, conta a juíza, ela fez uma inspeção carcerária na delegacia da cidade. Uma pequena cela dentro de outra maior era a única forma de isolar um preso dos outros, usada no caso de elementos perigosos.

Um dia depois, em 4 de maio de 2007, Clarice enviou um ofício ao delegado superintendente da região, Antônio da Cunha, pedindo reformas dentro de 120 dias, ou o prédio seria interditado. Quando o prazo se cumpriu, sem mudanças, o pedido foi reforçado ao corregedor das comarcas do interior no Tribunal de Justiça do Pará, desembargador Constantino Guerreiro, e à presidente da corte, desembargadora Albanira Bemerguy. Segundo a juíza, os comunicados não foram respondidos.

Em outubro, um mês depois da comunicação à direção do TJ, aconteceu a tragédia que já vinha sendo anunciada. Lidiane foi presa por furto, sem documentos. No auto de flagrante, diz a juíza, a garota foi identificada como Lidiane da Silva Prestes, de 20 anos, que respondia a oito processos na vara criminal. O flagrante foi homologado e a menina foi para a carceragem.

Uma inspeção do Conselho Tutelar culminou, depois de 17 dias, com um pedido de transferência de Lidiane. A informação era de que a menina era menor. Clarice mandou então que o diretor da secretaria de sua vara, Graciliano Mota, enviasse por fax um ofício ao corregedor, pedindo autorização para a medida. O procedimento, segundo ela, é exigido por provimento da Corregedoria.

Uma semana depois, quando o Conselho Tutelar e o Ministério Público já questionavam a prisão, Lidiane saiu da cadeia, mas não graças à agilidade da Justiça. Segundo a versão policial, ela teria fugido. Foi encontrada no cais da cidade no dia 17 de novembro. Diante da pressão da imprensa por esclarecimentos, juízes, promotores e defensores da comarca entraram em acordo e emitiram uma nota explicando que Clarice já havia pedido antes a transferência à Corregedoria.

Mas o corregedor e a presidente do tribunal não receberam o ofício na data mencionada. Segundo a juíza, o diretor da vara, Graciliano Mota, diante de uma inspeção, confessou mais tarde não ter enviado o fax ordenado pela juíza.

Na ocasião, no entanto, ele tentou contornar a situação, de acordo com ela. Apertado pela juíza, Mota inicialmente garantiu ter enviado o fax, mas disse ter perdido o ofício original, que deveria ter ido também por carta. Expediu, então, uma certidão pedida pela juíza, atestando o envio do fax. A certidão foi carimbada pela secretária do Fórum do município, Lourdes de Fátima Rodrigues Barbagelata.

Como só a correspondência faltava no procedimento, diz a juíza, “o diretor solicitou que eu assinasse uma cópia reimpressa para envio pelos correios à Corregedoria”.

A manobra só foi descoberta no fim de novembro, quando o desembargador Constantino Guerreiro foi pessoalmente a Abaetetuba checar a situação. Sua equipe comprovou, conferindo o computador do diretor da vara, que o ofício, embora datado de 7 de novembro, só foi criado no dia 20, usando numeração de outro ofício expedido antes. Conforme o relato de Clarice, Mota acabou confessando ao corregedor ter expedido um documento falso, mas afirmou ter seguido ordens da juíza.

“Quanto ao serventuário diretor de Secretaria da 3ª Vara, senhor Graciliano Chaves da Mota, verifica-se haver indícios em ter agido com má-fé ao certificar que o fax com o ofício nº 1.395, endereçado à Corregedoria do Interior, teria sido transmitido via fax à Corregedoria”, concluiu o corregedor na sindicância. “Independente do motivo que o levou a praticar tal ato, ou seja, para levar a erro a juíza Clarice, ou para se eximir de responsabilidade perante a juíza, a conduta do servidor afigura-se de extrema gravidade, pois foi capaz de expedir certidão com declaração falsa apesar da fé pública que seu cargo confere, cometendo ilícito administrativo.”

Mota foi punido com 90 dias de suspensão, sem direito a receber salários, porque “intencionalmente expediu certidão com teor inverídico, usando das atribuições conferidas pelo cargo público, declarando expedição do ofício nº 1.395/2007 e fax com solicitação de transferência da presa à Corregedoria de Justiça em 08.11.2007, sabendo tratar-se de fato falso”, disse o corregedor na conclusão da investigação.

A secretária do Fórum do município, Lourdes de Fátima Rodrigues Barbagelata, recebeu a mesma punição. Nenhuma das sanções, no entanto, foram cumpridas. Tanto Graciliano Mota quanto Lourdes Barbagelata entraram com recurso ao tribunal, contra a decisão da Corregedoria.

Quanto à juíza, a sindicância afirmou que, “por ocasião da manutenção do flagrante e no decorrer dos dias em que Lidiane passou encarcerada na Delegacia, não era do conhecimento da MM. Juíza sua condição de adolescente, pois conforme relatado foi qualificada na delegacia de polícia como maior de idade”, disse Guerreiro. Mesmo assim, ele pediu a abertura de processo disciplinar, alegando que a juíza não teve “o necessário cuidado ao manter o flagrante da mulher, sem indagar onde a mesma seria recolhida”.

Clarice discordou. “Por esse viés, não mais poderá ser homologado qualquer flagrante ou decretação de prisão preventiva no Brasil, por falta de condições de carceragem.” A mesma opinião teve a maioria dos desembargadores do Pleno do TJ-PA, que não aceitaram abrir uma investigação em relação à juíza, contra os votos do corregedor, da presidente da corte e de outros cinco desembargadores. “Essa sessão é nula, pois, de acordo com o Regimento Interno do tribunal, o presidente só vota em caso de empate, e o corregedor não vota por motivos óbvios”, diz a juíza.

Votaram pela não instauração do procedimento os desembargadores Maria Helena Ferreira, Sônia Parente, Rosa Portugal, Eronides Primo, Vânia Fortes, Raimundo Holanda, Maria Rita Xavier, Brígida Gonçalves, Maria de Nazaré Gouveia, Ricardo Nunes, Marneide Merabet, Cláudio Montalvão, Maria do Carmo Araújo, Maria de Nazaqré Saavedra e Dahil Paraense.

Foi a presidente do TJ, Albanira Bemerguy, quem recorreu da decisão de seu próprio tribunal ao CNJ. “Lamentavelmente, ela enviou somente parte do processo que respondi perante o Pleno, e esta parte enviada não continha a defesa apresentada no plenário”, conta Clarice.

A discussão no CNJ provocou mais uma confusão. O Regimento Interno anterior da casa previa que os conselheiros poderiam julgar pedidos de revisão de processos disciplinares. Aceito o pedido, o Conselho poderia absolver ou condenar o juiz. No entanto, o processo disciplinar contra Clarice não havia sequer sido aberto, bloqueado pelo Pleno do TJ. Por esse motivo, segundo ela, o CNJ alterou seu Regimento Interno em março do ano passado, para permitir, mesmo assim, a reanálise do julgamento.

Em vez de somente “alterar a classificação da infração, absolver ou condenar o juiz ou membro de Tribunal, modificar a pena ou anular o processo”, o recebimento do pedido de revisão passou a permitir também a abertura de um novo procedimento disciplinar. “Daí a manifesta nulidade da decisão do CNJ, pois nem mesmo em tese seria possível admitir a aplicação de uma norma que ainda não estava em vigor”, diz a juíza.

Não é o único defeito na decisão do CNJ, segundo Clarice. Ela também afirma que o conselho considerou como prova na votação os autos de um procedimento disciplinar aberto contra os policiais que prenderam Lidiane, no qual a juíza sequer foi ouvida. “Não houve contraditório, e os depoimentos dos policiais foram dados em defesa própria”, afirma.

"Certifiquei o que vi"

O diretor da vara de Clarice, Graciliano Mota, refuta as acusações da juíza. Segundo conta, ela nunca ordenou que ele mandasse o fax para a Corregedoria pedindo a transferência de Lidiane. "No dia 19 de novembro, ela sentou do lado da escrevente Ana Dias e ditou o ofício, que saiu com data retroativa de 8 de novembro", afirma. "Ela também rasurou a data do ofício da delegacia de Polícia que pedia a transferência."

Mesmo assim, ele admite ter expedido a certidão confirmando que o fax havia sido enviado assim que recebido o pedido de transferência, no dia 8 de novembro — o que era falso, segundo a sindicância. "Certitifiquei o que vi, e vi o ofício e o carimbo da diretoria do Fórum." Segundo Mota, foi a juíza quem rascunhou a certidão.

O diretor da 3ª Vara Criminal só não teve convicção ao responder por quê não havia cumprido a suspensão de 90 dias imposta pela Corregedoria. Primeiro, disse que a punição havia sido cumprida. Depois, afirmou que o processo havia sido arquivado. A última versão foi de que entrou com recurso contra a sanção disciplinar, que ainda aguarda análise.

Esquadrão de defesa

Ficaram ao lado da juíza, além dos desembargadores que não aceitaram a abertura do procedimento disciplinar no TJ, também a Associação dos Magistrados do Estado do Pará e a Associação dos Magistrados Brasileiros, que entrou com um Mandado de Segurança no Supremo pedindo a anulação da condenação no CNJ. Para a AMB, a juíza deveria ter sido, no máximo, repreendida, já que a responsabilidade pela prisão foi, de acordo com a entidade, exclusiva das autoridades policiais, que “não podiam deixar que qualquer detenta do sexo feminino permanecesse ou tivesse contato com detentos do sexo masculino”.

A associação ainda alegou que o CNJ foi omisso ao não examinar as provas produzidas pela defesa da juíza, “principalmente a de que a mesma detenta fora presa anteriormente, por ordem de outra juíza, na mesma cadeia, pelo mesmo tempo (24 dias) sem que nada acontecesse com ela”. Em maio, o ministro Joaquim Barbosa negou liminar no pedido.

Para a Amepa, a juíza foi vítima da falência do sistema prisional brasileiro, que ela mesmo já havia denunciado, e que a levou a pedir providências às autoridades.

Mérito esquecido

Até pouco antes do episódio que pôs fim à sua carreira, Clarice acumulava elogios, da corte paraense, de jurisdicionados, da Ordem dos Advogados do Brasil e inclusive do CNJ, que a condenou.

Entre as homenagens que ela guarda estão um prêmio de honra ao mérito recebido no ano passado da Associação Brasileira das Mulheres da Carreira Jurídica, da OAB e da Academia do Poeta Brasileiro no Pará, por “relevantes serviços prestados à comunidade, aos direitos do cidadão e da cidadania”.

Clarice também ostenta um agradecimento oficial feito no mesmo ano pela subsecção de Castanhal (PA) da OAB “pelos relevantes serviços prestados à advocacia”.
 
Do Tribunal de Justiça, Clarice recebeu, em 2005, elogios do corregedor Constantino Guerreiro, após uma inspeção na Vara de Baião, da qual ela era titular. Ele afirmou que, depois que a juíza assumiu a comarca, houve “melhor ordenamento dos trabalhos e uma liderança eficaz por parte da Sra. Juíza, isso tudo conduzindo a uma excelente prestação jurisdicional”. Do CNJ, a juíza ganhou um certificado cumprimentando-a por alcançar a Meta 2, segundo a qual os magistrados deveriam ter julgado, até o fim do ano passado, todos os processos recebidos até 2005. 
 
PAD 200910000007880 (CNJ)
MS 28.102 (STF)
MS 28.816 (STF)

Por Alessandro Cristo

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